Por Rodney Brocanelli
O Brasil é mesmo um país que não tem memória. É um clichê? Sim, mas ele continua cada vez mais traduzindo a realidade deste país. O último dia 11 de fevereiro marcou os 40 anos de uma estreia que mudou o panorama da televisão nos anos seguintes. Em 1984, na citada data, estreava pela TV Gazeta o Perdidos na Noite, comandado por Fausto Silva. Sem medo de errar, é possível escrever que ninguém lembrou.
Algo curioso é que, em sua estreia, o Perdidos na Noite era um programa dentro do outro. Explicando: ele fazia parte do 23ª Hora, que ia ao ar todos sábados, à noite, na TV Gazeta, comandado e dirigido por Goulart de Andrade.
“A programação alternativa das noites de sábado, a “23ª Hora”. de Goulart de Andrde, está ampliando suas opções ou, no dizer de seu diretor, “justificando os propósitos para os quais fou criada”. A partir fde hoje, no horário das 23 horas à uma da madrugada, um pouco da dinâmica do rádio será transplantada para a televisão, num programa de variedades de nome “Perdidos na Noite”, comandado por Fausto Silva e produzido por Lucimara Parisi”.
Assim abria o texto publicado em O Estado de S. Paulo, do dia 11 de fevereiro de 1984, sem assinatura, cujo título foi “Perdidos na Noite, a dinâmica do rádio na TV”.
Para quem não sabe, o Perdidos na Noite é um derivado do Balancê, programa de rádio veiculado pela antiga Rádio Excelsior (hoje CBN) no início dos anos 1980. Um de seus períodos de maior repercussão aconteceu justamente na fase em que Fausto Silva foi seu comandante. O sucesso era tamanho que durante uma certa época, ele foi apresentado do Teatro e Palhaçaria Pimpão, que ficava no bairro da Santa Cecília (SP), próximo aos estúdios do Sistema Globo de Rádio, “dono” da Excelsior.
Certa vez, Goulart de Andrade foi até a fim de fazer uma reportagem para seu programa e notou que Fausto e sua turma faziam um programa de rádio na televisão. Contamos essa história aqui mesmo no Radioamantes (e até por isso mesmo que esse registro da história de outro veículo é feito aqui em um site sobre rádio).
Ao tradicional jornal situado na margem do Rio Tietê, Fausto disse que o Perdidos “é uma opção para quem não aguenta tanto filme nas outras emissoras. Vamos brincar com o telespectador, fazendo-o participar , ao mesmo tempo em que desvendaremos os bastidores da televisão”. Aliás, o texto do Estadão informa um apelido pelo qual ele era conhecido: Pipa (Pipa?).
O programa contou com a presença da cantora Fafá de Belém, que segundo o jornal, falaria “sem a pressa obrigatória dos outros canais”. Os então jogadores Serginho, então defendendo o Santos, e Luis Pereira, atuando pelo Palmeiras, participaram falando sobre Copa do Mundo. Outra participação musical: a do Trio Los Angeles, cujos integrantes prometiam esclarecer a história de que estariam dublando a banda The Fevers na música de abertura da novela Transas & Caretas, da Rede Globo (alguém lembra dessa situação?).
O Perdidos na Noite se notabilizou pela divulgação do teatro. No seu primeiro programa, Silney Siqueira e Mauro Chaves, nomes conhecidos deste universo, estiveram presentes. Uma outra atração foi o músico Vidal França.
Um cardápio de atrações bem variado para duas horas de duração.
Não faltaram também as intervenções humorísticas de Carlos Roberto Escova e Nélson Tatá Alexandre, “o único quadro permanente do programa”, segundo o jornal. A sonoplastia contou com o talento de João Antônio de Souza, o Johnny Black.

Assim como o Balançê, o Perdidos na Noite foi um programa de auditório. Em seus primórdios, ele era gravado no Teatro Brigadeiro, na av. Brigadeiro Luiz Antônio, 884, no bairro da Bela Vista, também em São Paulo. O local hoje é ocupado pelo Teatro Nissi.
Em maio de 1984, Goulart de Andrade se transferiu para a TV Record levando o Perdidos na Noite. Dois meses depois, devido a questões financeiras, a equipe deixou o guarda-chuva do apresentador e a própria emissora acabou “ficando” com a atração, mantendo-a nas noites de sábado. Houve uma acomodação na grade e o programa de Goulart entrava logo depois, a partir da 01h.
Em pouco menos de um ano, o programa já apresentava bons índices de audiência. Segundo reportagem do Jornal do Brasil, publicada em 18 de janeiro de 1985, assinada por Mirian Lage , “em São Paulo, a média de audiência fica em torno de 10% e, no Rio 4%”. Números que deixavam para trás outra tradicional atração dos fins de noite da Record: o Clube dos Esportistas (exibida às terças). O “pandemônio visual a auditivo onde não acontece nada”, conforme palavras da jornalista, ficava na casa dos 4% em São Paulo e 2% no Rio de Janeiro.

Outro dado importante trazido pelo bom, velho e saudoso JB: de julho a outubro (1984), a audiência cresceu 88% em São Paulo. Com o vento a favor, a direção da Record decidiu, em agosto de 1985 antecipar o horário do Perdidos. Ele entraria no ar a partir das 22h30. Já em novembro, sem divulgação prévia, houve uma nova alteração, desta vez para as 22h.
Ao mesmo tempo em que o sucesso crescia, a Censura Federal, que ainda estava atuante naquele período, reforçou a sua vigilância, proibindo os palavrões que eram falados por Fausto, a dupla Tatá e Escova, e alguns de seus convidados. Volta e meia um sinal sonoro (o famoso piii) entrava por cima de alguma fala.
Em 1985, Miriam Lage, no Jornal do Brasil, incluiu o Perdidos na Noite em sua lista dos dez melhores programas de televisão daquele ano, ao lado da novela Roque Santeiro e da minissérie Grande Sertão: Veredas, ambas da Globo, os documentários Xingu, da Manchete, e Furacão Elis, da Bandeirantes, entre outros. “A irreverência bem-humorada do gordote (sic) Fausto Silva lhe assegurou um bom ano de audiência e a irrestrita simpatia do público. O programa mostra, sem pudores, o avesso da televisão arrumadinha, com uma espontaneidade cada vez mais rara”, escreveu a jornalista.
Em 1986, em uma publicação sem o dia e mês facilmente localizáveis (provavelmente seja das primeiras semanas daquele ano), a mesma Miriam (do JB) anunciava o namoro de Fausto Silva com a Bandeirantes. “Só não dará em casamento se a Record insistir para que ele cumpra o contrato em vigor até junho”, registrou.
O enlace foi registrado pelo periódico em março do mesmo ano pelo Informe JB, assinado por Ancelmo Góis: “Perdidos na Noite, agora pior que antes: esse será o novo slogan que o apresentador Fausto Silva vai usar em seu programa a partir do dia 19, às 22h, quando estreia na TV Bandeirantes”.
A estreia se deu em 19 de abril de 1986. Ou seja, a Record não jogou duro no que diz respeito ao contrato. Uma das vantagens da mudança de emissora é que a Bandeirantes já naquela época tinha um grande número de emissoras afiliadas espalhadas pelo Brasil. A Record ficava limitada apenas ao eixo Rio-SP e outras poucas estações de televisão.
Curioso que ao olhar a grade de programação da Bandeirantes daquela época, o Perdidos começava as 22h e a partir da meia noite entrava no ar o Plantão da Madrugada, comandado por…Goulart de Andrade.
Em outra publicação, ainda de 1986, a jornalista Marilia Martins, do JB (obrigado Arquivo Nacional) fez um breve balanço dos primeiros meses de Faustão em sua primeira passagem pela Band: “Perdeu muito do antigo charme brega e ganhou um ar mais competente, a começar pela apresentação. Resultado: em menos de um mês, já bateu o índices do Clube do Bolinha, o campeão da emissora. Um sucesso mais do que merecido para aquele que renovou a velha fórmula dos programas de auditório e ressuscitou um tipo de humor que se baseia, em grande parte no improviso da hora da gravação”.
O programa tinha fãs ilustres. Um deles era Caetano Veloso. Em uma reportagem do JB sobre as opções de programação da televisão no fim de noite e madrugada adentro, e seus fãs, ele disse: “Aos sábados, começo vendo os programas do Faustão, aquele gordo de São Paulo”.
Em julho de 1988, uma nota publicada na prestigiada coluna de Zózimo Barroso do Amaral já indicava o futuro de Fausto Silva na televisão: “Se ainda não conversou, a TV Globo vai conversar com o animador Fausto Silva, estrela das noites de sábado do programa Perdidos na Noite. Fausto será sondado sobre a possibilidade de vir a protagonizar um programa de variedades e distribuição de prêmios nas tardes de domingo. Com a morte do insubstituível Chacrinha, a emissora está sem um grande comunicador. Sabe-se, aliás, que a ideia é ocupar o espaço aberto nas tardes de sábado com uma programação esportiva, basicamente dirigida ao público masculino”.
Apesar do tom cuidadoso e até mesmo nonsense (“Se ainda não conversou, a TV Globo vai conversar…”), Zózimo acertou na mosca em relação as informações sobre o animador. Em março do ano seguinte, Fausto iria comandar um programa exatamente com as características citadas na emissora de maior audiência do país: o Domingão do Faustão.
O colunista não citou, mas pouco tempo antes, a Globo havia tirado Gugu Liberato do SBT. Ainda na fase de pré-produção e pilotos, Silvio Santos, com problemas na voz e temendo pelo futuro de seu programa e de sua emissora, foi diretamente até Roberto Marinho pedir a recontratação de seu pupilo. Contrariando as expectativas, o dono da Globo aquiesceu. Esse evento teve enorme influência para o que aconteceria depois.
Fausto teve uma carreira longeva na Globo. O Domingão foi ao ar de março de 1989 até junho de 2021. Em janeiro de 2022, ele se transferiu para a Bandeirantes, mas desta vez para estrelar o Faustão na Band até julho de 2023. Atualmente, o apresentador está afastado da televisão, em recuperação de um transplante de rim. realizado em janeiro de 2024. Pouco tempo antes, ele fez outro transplante, de coração.
Lucimara Parisi trabalhou com Faustão até 2009, quando ambos estavam na Rede Globo. No ano seguinte, foi trabalhar com outro comunicador: Ratinho. Essa parceria durou até 2022. Lucimara também foi para a frente das câmeras, apresentando um programa na RBTV.
Após o fim do Perdidos, Nélson Tatá Alexandre e Carlos Roberto Escova não foram trabalhar no Domingão do Fasutão. Tatá passou por diversas rádios desde então e integrava a equipe do Show de Rádio na Rádio Bandeirantes quando teve um aneurisma cerebral que o impediu de trabalhar.
Escova também seguiu sua carreira no rádio, mudando-se para Porto Alegre, onde trabalhou nas rádios Atlântida e Ipanema. Depois, ele voltou para São Paulo, indo para a Jovem Pan FM onde participou de vários quadros de humor. Nova mudança de endereço e ele foi viver em Miami (EUA). Retornou ao Brasil e ele foi morar na cidade de Ourinhos. Nesta cidade, atuou nas rádios Clube e Melodia. Morreu em 20 de dezembro de 2015.
João Antonio de Souza, o Johnny Black, também não foi levado por Faustão para a Globo. Seguiu sua carreira como operador de áudio, trabalhando nas emissoras do Sistema Globo de Rádio. Morreu em 4 de setembro de 1996.
Existem no YouTube vários registros do Perdidos na Noite tanto na Record como na Bandeirantes. A dúvida fica sobre o paradeiro das gravações da primeira fase, quando a atração estava ligada a Goulart de Andrade, seja na Gazeta ou na própria Record. A esperança é que elas estejam dentro do acervo de Goulart que foi doado à Cinemateca Brasileira.
Que os amantes da memória da televisão cruzem os dedos: em julho de 2021, a sede da Cinemateca sofreu um incêndio. Até hoje, fala-se que parte das fitas cedidas pelo jornalista foram danificadas, mas sem qualquer tipo de confirmação oficial.
Uma última nota sobre o 11 de fevereiro de 1984: naquele mesmo dia, dentro do 23ª Hora, estreava um outro quadro por alguém que também iria fazer uma carreira bem consistente na televisão, Silvio Lancellotti. Conhecido por sua ligação com o futebol italiano nos anos que se seguiram, ele comandava o Santa Ceia, que trazia o melhor dos restaurantes de São Paulo, com direito a receitas, e entrevistas com seus donos e chefes de cozinha.
A fotos que ilustram este post foram gentilmente cedidas pelo Felipe Martinelli Braga, que é autor de uma dissertação de mestrado sobre o Balancê, da Rádio Excelsior. Já falamos sobre esse trabalho aqui no Radioamantes.


